18 de setembro de 2013

O Dom De Sabrina






Horas após o crime, o patrão coça a barba, postado com um semblante de vítima por de detrás da vitrine da Loja Prata Fina, arrodeado de gerentes, vendedores e controladores de acesso. Ele se pergunta e se tortura pela resposta. Como alguém adentrou a sala de jóias? E como as câmeras não captaram a invasão? Como se tivesse visto essa cena, nesse momento, Sabrina movimentou ligeiramente os lábios, e já imaginava a reação patética dos supervisores da empresa que terceiriza os serviços de segurança do estabelecimento, os responsáveis indiretos por sua oportunidade. E o figurino dela? Farda e crachá da Jaguar Group, se apossando da identidade de uma funcionária recolhida que fora escolhida no dia como substituta na loja, e esse foi o seu disfarce. Depois a verdadeira seria encontrada, amarrada, enfeitada com uma mordaça na boca, assustada em um porão e exausta. Sabrina mandaria um torpedo para libertá-la. A última vez que foi vista, se retirava em passos de uma elegância que combinavam com o vestido, um modelo tubinho da Quintess ou talvez toda aquela postura se devia aos sapatos de salto Guangzhou. Tanto faz, ainda tenho mais um detalhe: Ao abandonar honestamente o local, ela ainda piscou ousadamente para os companheiros afastando-se temporariamente de qualquer suspeita. Na bolsa carrega o tape, a identidade corrupta em imagens do seu único dia como uma funcionária de segurança. Provas comprometedoras que se perderiam em suas mãos. Ela só precisou de um tempinho, de manter cérebros desconectados com a realidade, e isso foi conquistado de uma maneira sútil, ou vocês não sabiam que as sereias também conseguem atrair quando se calam? Toda moral tem seus benefícios. Por dentro de sua beleza clássica e indescritível um ego notório, que ela não deixou transparecer, e não pelo âmago farto e correspondido de toda uma sociedade de homens enamorados por aqueles traços fatais, que mal podiam disfarçar o sentimento ao vê-la ou pela oportunidade que esperavam silenciosamente de poder conhece-la mais de perto, não, e sim pelo orgulho do trabalho de furto que cometera. Sabrina, do alto dos seus avassaladores 1, 73 cm de altura e 24 anos de existência, além de tudo, era extremamente eficiente. Sua fisionomia jovem, estendida numa tez morena clara, que com descuido poderiam confundi-la com Jordana Brewster de 15 anos atrás - mesmo que só depois que essa atriz se sujeitasse a exaustivos treinos de musculação e dieta de proteínas, pois a garota aqui tinha um bum-bum enorme - algo em que ela era sempre pega se gabando. Essas qualidades poderiam ser um problema para o sucesso em exercer seu ofício, pois precisava passar despercebida nos "points" que agia. Já o seu quadril ao marchar poderia entregar uma naturalidade paulista e para o desequilíbrio desse perfil era exigido dela própria a si mesma uma adaptação do astral quente e agitado de origem brasileira. Ela só precisava de uma dosagem incomum de recato e isso lhe rendia costumeiros trabalhos mentais que ela, por experiência diplomada, tirava de letra.
Quando virou a esquina da exuberante Assunção - Capital do Paraguai - de 2025 - cidade que lembra Manhattan no final do século 20 -, uma porta acabara de ser aberta, a 20 metros um ronco hostil de uma máquina conquistadora insinua que o casal aprecia passeios radicais. Um carro incomum, blindado contra maus olhados, no volante, fiel como um cão, extremamente elegante, não pelo peso da etiqueta na lapela do terno de um preto fosco ou pelo lenço vermelho no bolso do paletó, mas pelo carisma treinado para uma vida errante de estelionatário. O Garotão de olhar verde piscina, empresta sua retina a ela espelhando os movimentos confidentes que ela conquistou na academia da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), ela entra, senta e manuseia a maçaneta interna do carro com trejeitos confiantes de "espiã- bandida", termo que substituiu ao de analista de informações automaticamente depois que ela desertou da inteligência do governo a 8 anos - cargo honrosamente disputado a duras penas em um concurso público em São Paulo. A "copiada" que ele dardejou a satisfez, e como ela esperava, uma intensidade rara e meio moleque, são olhos para assegurar uma vida. Ela estava protegida. Desde que se conheceram, no camarim de um show sertanejo que Sabrina resolveu invadir por um autógrafo e Conrad precisou intervir - ainda atuava como guarda-costas de artistas. O trabalho não foi fácil, os dois trocaram olhares surpresos e antes de um deles esboçar um sorriso ou dizer algo tipo "Eu te conheço de algum lugar", ele a agarrou e tascou-lhe um beijo extravagante e correspondido, nada que ela não faria primeiro. Desde então estabeleceram um affair. Hoje, muitas giradas de globo depois e os dois se arriscam pelo mundo como se alimentassem de adrenalina. Ele sempre assumiu uma postura leal e verdadeira para qualquer evento ou problema e ela sempre recompensou de uma forma mais sútil, mas na mesma moeda. Quando decidiram pela criminalidade eram apenas dois jovens extremamente corajosos. Conrad está sempre por trás dos furtos, é encarregado de vigiar e detectar qualquer tipo de intervenção, fora treinado por ela e funciona como um contato fundamental para uma eventual fuga. Ele já sentia um peso enorme com isso, preferia segura-la nos braços como naquele fim de tarde ensolarado, brincar de carrega-la desde o início da avenida ao interior do veículo, até acomodar no estofamento a segurança daquele amor que eles teimavam em rotular como aventura. Ele aperta no painel da máquina o botão de ignição do GT500 Shelby Mustang, o carro segue o destino de alívio após uma operação, 18 horas depois, como combinado, a cidade de Mar Del Plata teria uma visita, comemorariam no Cassino tradicional, olhos de transeuntes disputariam um ângulo melhor para focar o ibope momentâneo que eles fingiriam não perceber. Quando ela fecha a porta, olha fugaz e suavemente para ele, escolhe o idioma para dizer um oi e experimenta um meio sorriso familiar, agora de olhos na estrada:
- Por que não me mandou um sinal? - Ele pergunta incisivo, sua voz soa a de um locutor.
- Desculpe, fantasias acontecem numa sala recheada de Jóias - risos - "Relax", ainda estou dentro do horário estipulado, você sabe que em circunstâncias como essa eu jamais falharia - ela rebate e encerra, agora com um olhar confiante.
Conrad sabia com quem estava falando, perguntou só para seguir o protocolo, achava o profissionalismo como a conservação de uma engrenagem na máquina dos negócios bem sucedidos. 
Com o pé na tábua, algumas centenas de metros e eles se permitiram a uma conversa eufórica, foi o fim de todo o disfarce. Em pauta, escorregando feito uma cachoeira de prazeres nos lábios de Sabrina, detalhes da ação nua e crua, revelações expostas do acesso ao circuito interno de monitoramento, o modo como interrompeu o andamento das imagens internas, e o recolhimento das gargantilhas na sala de glamour, Sabrina despiu os manequins e tratou de evaporar de toda a cena, deixando como legado para os donos um pomposo ponto de interrogação. 
A 10 Km adiante, no gramado do acostamento de uma estrada de acesso ao centro da cidade, o uniforme, crachás e a fita - com registros dela - foram desovados, queimados com uma cota de combustível, desaparecendo do convívio deles, aquilo valia como um cúmplice de vida própria. Eles se dirigiram na fé ao Casino Central, e não temiam ser seguidos por nenhum fantasma, ou alguma testemunha recém nascida. Acreditavam muito em crimes perfeitos, sem pegadas ou odores próprios que os comprometessem. 
- Puts vai chover, está fechando o tempo - afirmou Conrad.
- Tinha que ser, passa o dia com um calor dos infernos, agora chuva, que raiva - ela respondeu atenta.
- É culpa dos Icebergs, efeito estufa, daqui uns anos vai estar tudo muito pior.
- Um dia a natureza se cansa, não é mesmo?
- Só não se cansa de te contemplar - disse ele, abrindo um sorriso.
Ela riu baixinho e só conseguiu dizer:
- ai ai ai, boa de novo, mas não exagere - ela sempre dizia isso.
- "Ta" eu aceito a sua modéstia.
- E eu aceito seu elogio exagerado. 
- Eu aceito suas rebatidas rápidas.
- Eu aceito seus argumentos.
- Eu aceito seu espirito competitivo.
Sabrina riu e disse:
- Ai ai ai… eu aceito sua inteligência exagerada.
- E eu aceito seu bom humor. 
- Aceito sua mania de não admitir perder.
Conrad riu falando:
- Eu aceito seu 6° sentido
- Eu aceito que eu perdi - Os dois gargalharam, e Conrad continuou com a palhaçada: 
- Uma mulher durona, eu gosto assim. 
- Isso mesmo, homem só precisa saber quatro letras.
Finalmente ele não sabia, se tratava de uma piada velha:
- Quais?
- O B D C - entre risos, ela encerrou o quiz dos bem humorados.
Eles curtiram juntos uns dias pelas praias Argentinas, beberam Belini e passearam bem vestidos nas noites mais badaladas de Buenos Aires. Dias depois, Sabrina decide voltar para sua terra natal, ainda temia ser capturada pela ABIN, mas preferia montar os cacos de sua vida, estourados por uma antiga escolha aventureira de vida errante no exterior. Conrad precisava de alguns dias mais para cumprir um trato com um membro de uma gangue dele e ficou de ir depois. Decidiram realmente mudar. Quando ela chegou no destino em Diadema se tornou novamente Gabriela, dez vezes mais mulher, e já foi matando a saudade antes mesmo de reencontrar os familiares, de longe, avistando do táxi a velha represa Billings.
Os dias se passaram e o trato dos dois não vingou, Conrad não aparecera, não atendia nenhum celular. 
Ela vive hoje nas ruas de sua infância, com sua família, nos antigos passeios adolescentes e festas em que aprendeu a dançar. Nada de fingir ser uma santa, nada de interpretar, nada de trabalho 24 horas por dia, ela se despiu dos retoques para ser ela mesma, mas faz questão quanto as lembranças, na verdade era necessário mante-las, especialmente as conversas engraçadas que eles tinham, a ausência dele tem sido para ela como uma mudança de ar, um gosto rarefeito de vida. Assim é a saudade dos primeiros dias. Ela se prepara mentalmente demonstrando a mesma capacidade adaptável que fez dela uma das melhores agentes, rica e independente. Gabriela anda dolorida, mas ainda possui um dom forte: Mais uma vez movimenta os lábios como prova de assistir uma cena presente, pois ainda tem um coração forte para acreditar num reencontro definitivo, longe da perseguição dos federais, em um mundo em que os dois intitulariam de "Outra Vida".

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